A
filosofia de Agostinho sobre o homem e o conhecimento
As Confissões
constituem o documento mais importante para conhecer a personalidade de
Agostinho. Nos primeiros capítulos, ele descreve a época inquieta, marcada por
desgarramentos interiores, antes de sua conversão ao Cristianismo. Os capítulos
seguintes contêm a célebre “teoria da memória”, bem como reflexões sobre a
consciência e o tempo. Encontram-se, ali, os elementos de uma filosofia da
consciência antecipante.
Em doze pontos podemos
sintetizar a filosofia de Agostinho sobre o homem e o conhecimento:
1 - O caminho adotado
por Agostinho para o “conhecimento de si” tem como característica o seu
abandono nas mãos de Deus. A respeito, escrevia Agostinho: “Só posso me conhecer
a mim mesmo à luz da verdade, graças à qual sou sempre conhecido (como
criatura)”. É na fé que o homem pode desenvolver a sua faculdade de conhecer.
Reciprocamente, o conhecimento reforça a fé. A respeito, Agostinho frisava:
“Crede ut intelligas; intellige ut credas” (Crê para que conheças; conhece para
crer).
2 – A busca das
condições do conhecimento conduz à descoberta do fundamento do saber na certeza
interior da consciência. No seu esforço para superar o ceticismo, Agostinho
encontrou um caminho de pensamento comparável ao que Descartes seguiria mais
tarde. Eu posso me equivocar acerca das coisas fora de mim. Mas, enquanto
duvido, sou consciente de mim mesmo enquanto duvidante. A certeza da minha
existência é pressuposta em todo julgamento, em toda dúvida e em todo erro: “Si
enim fallor, sum” (Pois se me engano, então existo).
3 – Destarte, a via em
direção aos fundamentos da certeza conduz à interioridade. A respeito,
Agostinho escrevia: “Noli foris ire, in teipsum redi; in interiore homine habitat
veritas” (Não queiras ir fora de ti; volta-te sobre ti mesmo, pois no interior
do homem habita a verdade). O homem, ao procurar a verdade, envolve-se num
movimento que o conduz sempre mais longe, ao interior de si mesmo e que
constitui o ponto de partida para a ascensão ao amor de Deus. Esse movimento
leva o homem do mundo exterior e sensível (foris) ao mundo interior do espírito
humano (intus) e, daí ao mais íntimo do coração (intimum cordis). Tudo se
dirige “a Deus como fundamento original da verdade em si mesma”.
4 - É no seu interior
que o homem encontra certas verdades necessárias e seguras, válidas
independentemente do tempo e supra-individuais (por exemplo, os fundamentos da
matemática e o princípio de não contradição). Essas verdades não provêm da
experiência sensível, pois a sua análise mostra, pelo contrário, que elas
pressupõem já idéias determinadas que não podem se tornar presentes sem uma
participação intelectual. Isso vale, por exemplo, para as idéias de unidade ou
de igualdade, que não encontramos, de início, na experiência sensível.
Igualmente, a impressão sensível, efêmera, não é capaz de nos fornecer nenhum
conceito acerca das coisas. É unicamente quando podemos conservar as imagens
dessas impressões na memória, juntá-las e compará-las, que nós conseguimos
chegar a uma certa claridade quanto à natureza das coisas sensíveis.
5 – Chegamos ao domínio
das idéias mediante a Iluminação, que consiste numa projeção da luz divina
sobre o nosso entendimento. A respeito, Agostinho frisava: “As verdades eternas
nos são dadas graças à iluminação de Deus”. Essa ação de iluminação é
comparável à projeção da luz do sol. “A força do espírito corresponde aos
olhos, os objetos do conhecimento são as coisas iluminadas e a força da verdade
é o sol”. Agostinho utilizava, aqui, uma imagem tomada de empréstimo à tradição
neoplatônica da metafísica da luz.
6 – As idéias são os
arquétipos de todos os seres no espírito de Deus. O mundo criado é a realização
e o reflexo desses arquétipos. Deus cria o Mundo a partir do Nada. Isso
significa que, antes da criação, não havia nem Matéria, nem Tempo. O tempo só
aparece com a criação e Deus encontra-se, assim, fora da temporalidade. Se
perguntar pela data do nascimento do mundo é um absurdo.
7 – Os elementos que
constituem o Mundo são: a Matéria, o Tempo e a Forma (as idéias eternas). Deus
criou, ao mesmo tempo, uma parte dos seres na sua forma completa (anjos,
animais, astros). Quanto à outra parte das criaturas, ela é submetida à mudança
(por exemplo, o corpo dos seres vivos). Para explicitar isso, Agostinho acudia
à teoria das “rationes seminales” (formas fecundantes). Essa espécie de germes
originais é implantada por Deus na matéria e, a partir deles, se desenvolvem os
seres vivos. É assim como se pode compreender o processo de desenvolvimento e
diversificação das espécies, sem ter de levar em consideração outras causas
diferentes da absoluta força criadora de Deus. O pensamento de Agostinho,
destarte, não se fecha à idéia de evolução, que posteriormente foi introduzida
a partir do desenvolvimento das ciências, no século XIX.
8 – O homem, essência
temporal em face da eternidade. Tornou-se conhecida a análise do tempo feita
por Agostinho, no XI capítulo dasConfissões. O autor não ficava apenas na
descrição da faculdade da consciência (memória), constitutiva da experiência do
tempo. O pensador examinava, de forma radical, a constituição fundamental do
ser do homem, como sendo uma essência temporal em face da eternidade da
verdade. Agostinho mudou radicalmente a antiga concepção do tempo ligado ao
kosmos grego, conferindo-lhe a dimensão de uma consciência da temporalidade,
interna e subjetiva. Se considerarmos o tempo como algo objetivo, ele se
decompõe em momentos diferentes. Pois o passado já não é mais, o futuro ainda não
é e o presente reduz-se ao instante de passagem do passado ao futuro. Temos,
portanto, uma consciência da duração, umaexperiência do tempo e dispomos de uma
medida deste. Isso só é possível se a consciência humana possuir a faculdade de
conservar, na memória, enquanto imagens, os traços que deixa a impressão
sensível passageira, produzindo, assim, a idéia de duração.
9 - Três dimensões
antropológicas do Tempo, decorrentes da forma em que as imagens se tornam
presentes ao espírito. A primeira seria “o presente do passado” e constitui a
memória; a segunda dimensão estaria constituída pelo “presente do presente” e
abre espaço para a visão; a terceira dimensão identificar-se-ia com o “presente
do futuro” e constitui a base da espera. Segundo Agostinho, não é correto dizer
que o passado e o futuro são, pois somente a experiência do presente existe
verdadeiramente, acompanhada, no espírito, de uma representação do passado e do
futuro. Na consciência, medimos o tempo que nos é assim dado como um
“prolongamento da alma” (distentio animi). No limite desse prolongamento em
direção ao passado e ao futuro, as imagens se obscurecem cada vez mais. Como o
espírito produz, dessa forma, as dimensões temporais, a interioridade do homem
está numa espera perpétua, dividida entre a realização do futuro e a lembrança.
10 – Antropologia do
tempo fundada numa Teologia da Salvação. A originalidade de Agostinho consistiu
em transformar a visão platônica do tempo, definido como queda, imagem imóvel e
pervertida da eternidade, numa justificação do tempo como espaço de criação e
santificação, no qual a existência pode se salvar, pois ela se vincula à
essência divina que a criou, tirando-a do Nada sempre ameaçador, e que puxa os
homens em direção dele. Tal concepção da temporalidade supera a dimensão
cíclica do tempo, presente nos mitos antigos, e abre uma nova perspectiva de
tempo linear e progressista (que vamos encontrar nas Filosofias da História dos
séculos posteriores, até a contemporaneidade). Para Agostinho, o Ser (Deus) nos
tira do Nada e nos incita a ser e a nos livrarmos do mal ensejado pelo fluxo do
tempo.
11 – Conquista da paz
interior ou serenidade do espírito na espera do futuro salvífico. A experiência
de uma temporalidade própria, segundo Agostinho, orienta o homem em direção ao
não perecível. O espírito conquista a serenidade se voltando para a verdade
eterna, como frisava Agostinho, “não disperso através de uma multiplicidade
sempre em movimento, mas reunido na antecipação do porvir”. Na medida em que o
espírito se volta para o Deus eterno, do qual provém todo ser, o homem
“participa da sua eternidade”.
12 – Essência complexa
do homem, imagem da Trindade divina. O homem é, para Agostinho, “uma substância
feita de corpo e alma e dotada de entendimento”. A alma, no composto humano,
tem a preeminência. O “homem interior” se manifesta como unidade de uma
trindade, ou seja, ele se apreende como consciência (memória),entendimento
(intelligentia) e vontade (voluntas). O homem é, assim, para Agostinho, imagem
da trindade divina.
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