terça-feira, 29 de março de 2016

O Princípio Esperança, por Ernst Bloch

Ainda não é noite o dia todo, ainda há uma manhã para cada noite.


O processo do mundo ainda não está decidido em nenhum lugar, nem tão-pouco está frustrado; e os homens podem ser na terra os guardiões do seu rumo ainda não decidido, quer para a salvação, quer para a perdição. O mundo permanece, na sua totalidade, como um fabril laboratorium possibilis salutis.
(Ernst Bloch)



“Que as coisas continuem como antes, eis a catástrofe!” Essa frase é de Walter Benjamin, esquecida em um dos labirintos do monumental Paris, capital do século XIX. Talvez seja uma das imagens mais precisas do que venha a ser o espírito do princípio esperança que o filósofo Ernst Bloch nos anuncia. Vivemos entre essa catástrofe apontada por Benjamin, com sua força destruidora que nos joga subitamente de volta aos ritmos já conhecidos da música do mundo triste, sempre tão igual, e a esperança de uma outra manhã que surpreenda como algo novo. Bloch é um dos grandes filósofos da utopia e construiu em seus 92 anos de vida uma surpreendente reflexão acerca da esperança, mostrando o quanto esse sentimento-conceito foi negligenciado.

Ao apresentar uma breve e densa história da filosofia, da história e da política, Bloch mostra como a destreza dos espíritos, pela maquinaria do funcionamento social, trancafiou os sonhos em redomas coloridas e esvaziou de tal forma o espírito das utopias, chegando, hoje, a usar tal termo para desqualificar uma ação. Com o livro O Princípio Esperança, primeiro de uma série de três volumes, Bloch aposta na esperança e reafirma a força dos resistentes. O livro foi escrito entre 1938 e 1947 enquanto a humanidade vivia tempos de grande destruição (Segunda Guerra Mundial), e alguns sonhos foram queimados de forma cruel em campos de extermínio (tanto os campos prisionais nazistas como os campos “laboratoriais” estadunidenses). Bloch faz do texto uma forma de protesto contra a cultura do mal que se desenhava em seu país (Alemanha). O livro começa com cinco perguntas – secas, diretas e essenciais: “Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? O que esperamos? O que nos espera?”.

Bloch foi muito cauteloso para penetrar a escuridão e poder sair, como ele mesmo diz, da paralisia de nosso miserável conhecimento. Ele insiste, em vários momentos do livro, em afirmar que há uma proximidade que turva o olhar, da mesma forma como ao pé do farol não há luz. Sem um horizonte que nos acorde de nossa letargia acomodada não podemos ver mais nada. Sem a provocação do amanhã não poderemos sair do castelo das fatalidades descrito por Leibniz. Mas o fundamental é que se trata de um horizonte que nos joga no aqui e no agora. Esse é, aliás, o princípio motor das utopias desde Tomas Morus e sua ilha de sonhos. As utopias sempre foram literaturas críticas que almejavam pensar o agora e transformá-lo. Bloch não se conforma a tal realidade, que nos sugere que o “sonho” precisa ser sonhado para nos manter funcionando como máquinas que esqueceram seu princípio de funcionamento. Há sonhos que paralisam!

Critica, assim, o sonho contemplativo, disfarçado com as roupagens do grande saber e que joga o sujeito contemporâneo em uma eterna prorrogação do viver. É surpreendente que tenhamos esperado quase 50 anos para ter a tradução dessa obra no Brasil. Como um livro que aborda o futuro demora tanto para chegar num país que, nas palavras de Stefan Zweig, é o país do futuro? Essa obra surge como a luz de uma estrela distante, mas ainda em alcançável. Certamente serão poucos seus leitores, pois ninguém, infelizmente, tem mais tempo e fôlego para um livro de mais de 400 páginas (os três volumes somam mais de mil páginas).

Aqueles, no entanto, que se aventurarem nessa experiência fantástica, encontrarão imagens surpreendentes que Bloch extrai de inúmeros campos do conhecimento e, sobretudo, na literatura. Imagens que nos convocam à ação e tentam substituir o bafo do porão pelo ar da manhã, como diz Bloch. Assim, podemos recuperar as imagens do sonho que move a vida e que nos faz acreditar ainda em um Outro Mundo Possível.

Vivemos contaminados pelo ontem, pelo senso comum que anestesia as potências criativas que todos, em algum canto da alma, possuem. A utopia está tanto nos grandes movimentos sociais que a história já conheceu como nas pequenas ações que podem revolucionar o dia de qualquer um de nós. Superar o velho hábito confortável que nos conduz à mesma trilha no meio do deserto, dizer o que ainda não se disse, imaginar o que ainda não existe é o que alimenta a esperança. Bloch não negligencia esses detalhes em sua obra, mesmo que construa como pano de fundo de sua reflexão uma densa análise das amarras que o capitalismo teceu e, como contraponto, um outro pensamento inspirado, sobretudo, em Marx, que apostava em uma humanidade socialmente possível.

Recorre também à arte, indicando a criação como a revolta necessária que nos conduz ao amanhã. Percorre inúmeras obras na literatura, na música, no teatro, na dança, no cinema, nas artes. Reconhece que é no ato de criação que a vida é possível, e assim podemos nos poupar um pouco da morte, já que viver cada dia as mesmas coisas vai nos matando aos poucos.

São poucos os livros de Bloch disponíveis nas livrarias brasileiras, e a maior parte de sua obra ainda continua inédita em português. Bloch quer pensar como se dão as realidades, as categorias do possível, o verniz das ideologias, o desperdício das forças vitais capturadas no fatalismo interesseiro que diz: não há saída! “Quando não se consegue achar uma saída para a decadência, o medo se antepõe e se contrapõe à esperança”, diz Bloch. Medo e esperança são palavras presentes em nossa história política recente. Diante o panorama de catástrofe que o país vem vivendo, entre a violência da esquina e a indecência nos bastidores da política, a reação possível é arriscar no juízo de Bloch de que pensar é ultrapassar. Pensamos com imagens. Assim precisamos de novas imagens que redesenhem nossas vidas com o cuidado de não aquecer a mesma sopa na panela nova. É catastrófico o relato de Thomas Bernhard de que, retornando à escola depois da guerra, percebeu, substituindo a fotografia de Hitler, um crucifixo. O prego, contudo, era o mesmo. Mudar o prego significa sonhar para frente, já que o princípio esperança de Bloch aposta no que ainda não-veio-a-ser. Precisamos ultrapassar as fronteiras da esperança!


Fonte: http://fronteirasdaesperanca.blogspot.com.br