O mundo do capitalismo transforma produtos em mercadorias. A mercadoria tem um poder especial, ou seja, ela é o produto que circula e se dispõe no mercado. Uma vez no mercado ela é valorizada por seu valor de mercado – daí o nome: mercadoria. Neste, o mercado, seu valor é o valor de troca, não o de uso. E a troca se faz por equivalente. Coisas não iguais perdem suas características e são tornadas “iguais”. Iguais pelo símbolo matemático “=”. Isso porque há um elemento que iguala troca de mercadorias: o dinheiro. Eis aí, grosseiramente, o segredo desvendado por Marx quanto ao que é a base da transformação da vida moderna por meio do capitalismo.
O que ocorre nessa troca de equivalentes? Ocorre que quando o mercado se universaliza como sendo a principal das relações entre todos, ele invade todo o campo da vida e impõe ao homem sua lógica, sua feição, seu estilo: a vida é mensurada pelo equivalente, ou seja, pela troca do que pode ser igual, igualado, descaracterizado de suas feições particulares. Uma vaca é substituída por um número, o dinheiro, e este número pode abocanhar um carro. Nesse sentido o carro fica igual, ou melhor, equivalente, a uma vaca. Vaca e carro e tudo o mais é o abstrato dinheiro, o igual – o até então inigualável, agora é simplesmente, por uma passe que pareceria mágica, igualado.
O mundo então adquire a feição prometida pela política da modernidade: a democracia. Nela todos são iguais. Ora, é o mercado, portanto, alguém que pode se aproximar da democracia, também ele iguala! Aos poucos tudo é regido pelo sinal “=”, tudo é equacionável, ou seja, vira equação, a forma de deixar as coisas com a única feição, a feição do abstrato, do intercambiável. É nesse sentido que o mundo do capitalismo desfaz as diferenças. O mundo do capitalismo, o mundo da sociedade de mercado, rompe com hierarquias e diferenças, de modo que se chega à central e perigosa monstruosidade: o não-diferenciado. Eis então a oportunidade eliminar diferenças entre original e cópia, entre autêntico e inautêntico. Nessa situação o palco montado para que se perca a noção do que é a imagem (a cópia) e o real (ou seja, o que dá origem à cópia) se ergue e efetivamente o mundo do indiferente se faz valer.
Quando se chega nisso, estamos então na sociedade do espetáculo. Pois tudo é “para os olhos”, para ser visto e, portanto, tudo é imagem; assim sendo, como mera cópia, se passa tranquilamente pelo próprio real. Pois ninguém sabe se é o real ou se é cópia que está ali como espetaculum, o que se fita. É nesse sentido que há a sociedade do espetáculo, ou seja, a sociedade da imagem, do que é representação. As imagens podem ser o real e o real pode ser imagem. A mídia nada faz senão ampliar isso ao máximo. Ela não produz essa sociedade, ela é apenas a tecnologia adaptada, ou a tecnologia melhor adaptada, ao que é o espetáculo – ela é o que é melhor adaptado à sociedade do espetáculo. Olhando para ela, pode-se dizer: essa sociedade só poderia mesmo ter essa tecnologia, essa mídia!
O jornalismo que se faz por meio dessa mídia torna-se facilmente a troca sem hierarquias de imagens: o ursinho panda nasceu, viva, e agora milhares morreram no Afeganistão e, então, que se foda a Petrobrás. É isso vemos William Waack balbuciar, preso à lógica do “mais do mesmo”.
Desse modo, é um erro pensar na mídia como autora de um processo, o espetáculo, ao menos segundo a análise marxista. Ela é um elemento de ampliação da repetição das imagens, mas a indistinção entre cópia e original que permite que exista tudo como imagem, como o que é “para os olhos”, já está feita sem a mídia. É o capitalismo que produz isso. Ele produz igualando não iguais, cópia e real, e isso não é outra coisa senão a banalização de tudo.
Quando a mídia cria a indistinção em escala gigantesca, aí sim ele reforça o processo do qual nasceu. Ele troca o espetáculo por uma específica forma do espetáculo: as imagens efetivamente como real. O real é imagem, diz Heidegger a respeito da sociedade moderna., por que tudo se torna objeto já que algo se torna sujeito – o homem é transformado em sujeito, em subjectum, em palco do mundo. Mas o marxismo diz isso segundo um critério um pouco diferente: o real é imagem porque antes a imagem tomou o lugar do real por meio da preponderância de uma forma de organizar a produção, a circulação e o consumo. A mídia acelera e amplia essa confusão entre imagem e real e abre espaço para o tédio, para a deserotização. Tudo é sem hierarquia, tudo é igual, tudo é para ser visto segundo o critério do “mais do mesmo”. Eis então que nada mais tem encanto, nada mais tem aura (assim diríamos se seguíssemos Walter Benjamin), tudo efetivamente se racionaliza em um sentido muito peculiar e técnico da palavra racionalizar: o mundo desencantado de Weber efetivamente emerge nisso, e o homem é mesmo, então, o “especialista sem inteligência e o hedonista sem coração”. Desse modo, apenas ferroadas momentâneas ainda não nos deixa em total estádio do ópio mortal. Fora elas, as ferroadas momentâneas, não nos saberíamos como vivos, se é que estamos vivos.
Crystal Palace: Picture of the Great Exhibition of 18511854
Numa sociedade assim, em que todos dormem, para seguir aqui a fala de Guy Debord, a sociedade do espetáculo cumpre seu destino, eleva o tédio ao máximo e pede, para que saiba que se está dormindo e não morto, que de vez em quando alguém aumente a dose de ferroadas. Fazemos como as ferroadas para “acordar” o que se faz com a droga excitante: “mais do mesmo”, já que o o mesmo do mesmo não faz mais efeito. Desse modo, só é notícia aquilo que não for “mais do mesmo”, mas “muito mais do mesmo”. A tragédia de ontem não serve, é preciso a mesma tragédia, mas em um grau mais avassalador. A morte precisa ser mais horrenda e em maior escala. Pode ser limpa, mas precisa voltar a correr na lógica da ampliação em alguns de seus traços. Só assim há chance do tédio ser quebrado por alguns segundos e o sono poder ganhar, nesse tempo curto, o caráter de sono mesmo e não de morte. Ficamos sabendo que estamos vivos por isso. Mas até isso é tedioso pois é repetitivo, pois logo morremos para acordar em seguida. O próprio processo de aumento da ferroada tem limite, e então caímos definitivamente em sono profundo. Um coma induzido!
Mas e se não temos essa ferroada? Então nós mesmos nos aferroamos, mas também de modo falso. Como? Nós agora somos a mídia, criamos nossa imagem, nossos selfies; geramos nossa disposição para dizer que estamos ali comendo uma macarronada ou comendo uma mulher, e por isso, por sermos possíveis imagens, temos a chance de ser alguma coisa, entramos no jogo do que pode, por alguns segundos, ser apontado como estando vivo. Somos isso se a mídia nos transporta, colocando-nos no declarado real: o palco das imagens, que é o olho do homem enquanto olho da mídia, o olho da rede social em questão. Perversamente Heidegger diz: isso não é o anti-humanismo, isso é o próprio humanismo: tudo é algo se é no palco do que é o homem, uma vez que tudo é para o olho do homem, tudo é manipulável como quem manipula notas gastas do papel moeda e da transferência pela internet de dinheiro. O mundo do Humanismo, desse modo, se torna o mundo da manipulação. Não manipulação mental somente, mas material. Pegamos pessoas e cães como quem pega bananas, para fotos ou experiências genéticas. Nesse mundo, o personagem principal, o homem, é o secundário, uma vez que, de fato, ele nada é senão o monstro do filme O labirinto do Fauno, aquele monstro que possui os olhos nas palmas da mão.
Nesse tipo de análise, como bem disse Olgária Matos no Hora da Coruja de 06/07/2014, também nós no ato de produção de informações e imagens, não inovamos e nem trazemos outra coisa senão a continuidade desse processo de mais imagens na trama do que é a produção do central dessa forma de vida: o espetáculo. Cada um com seu computador ou derivados, não inverte e nem escapa dessa produção de criar palcos de “mais do mesmo” e “mais do super mesmo”.
Engano nosso se achamos que isso é atividade ou interatividade, como contraposto à passividade. Estamos sim num frenesi de interatividade, mas na lógica da produção do que é repetitivo na indistinção e, então, um tédio.
Como se pode notar, nessa ótica, a “sociedade do espetáculo” é parte da “sociedade de consumo”, mas o fenômeno do “consumismo” não é um problema em si. Por isso Marx nunca quis viver numa sociedade do passado, feudal, sem consumo em larga escola. Porque o consumismo era, para ele, apenas subproduto, não imediatamente problemático, da sociedade de mercado ampliada que se transforma em sociedade do espetáculo.
Raciocinar assim, segundo a teoria exposta aqui, é levar Marx a sério. É levar Heidegger a sério. Mas, para tal, é necessário fazer cada uma das passagens aqui indicada, com critério da cadência e da calma filosófica. Não é em velocidade avançada que se faz isso. E para tal é necessário formação – formação heroica, pois se trata de uma tentativa de ser algo produzido nesse tempo, e concomitantemente, ser algo que possa fazer a crítica desse tempo. Compreender o mundo assim é ver o mundo do espetáculo sem, no entanto, sucumbir a ele. Não cair na profusão de imagens sem hierarquia, que impedem o pensamento porque, afinal, a equivalência depende da álgebra, e a álgebra é a matemática dos burros. Trocar variáveis abstratas, fazendo o jogo algébrico de “isso equivale a tal coisa”, não é, convenhamos, um ato de grande inteligência. É um ato de entorpecimento do raciocínio, um adormecer. Uma morte. Um grande banho no mar gigantesco da indistinção.
É bobagem querer entender tudo isso como ciência empírica. Nem sociologia isso é. Isso é filosofia. Uma narrativa teórica sobre nossa vida, com nítidas passadas ficcionais, o seja, é a criação de um modelo para dizer como estamos e como estaremos. Um modelo, e não o modelo único.
Há mais que dizer sobre o espetáculo? Sim, e há outros pontos de vista sobre o assunto. Posso imaginar uma outra via de abordagem a partir de Peter Sloterdijk, talvez até de Richard Rorty. Farei isso em outras oportunidades. Não em oposição a essa narrativa exposta aqui, mas como o que se pode pensar a mais que isso, inclusive de modo a não fornecer “mais do mesmo”. Sair do “mais do mesmo” é talvez a única esperança que temos de escapar, ainda que nos eu interior, dos efeitos devastadores da banalização completa de tudo, a imposição da vida da “igualação de todos contra todos”, escapar dos efeitos mais horríveis da vitória do Terceiro estado, não o pedido de liberdade ou de fraternidade, mas o de igualdade.
Ser igual, tornar-se igual, somar a igualdade formal política a uma igualdade que faz com que ninguém tenha uma ruga na testa que o outro não possa ter, sendo todos intercambiáveis, é o efeito colateral do igualitarismo do Terceiro Estado.
Paulo Ghiraldelli, 56, filósofo. Autor de A filosofia como crítica da cultura (Cortez, 2014)
FONTE: http://ghiraldelli.pro.br/o-que-e-a-sociedade-do-espetaculo/#more-2782