quinta-feira, 28 de maio de 2015

HEGEL E A INTERPRETAÇÃO DO MUNDO

HEGEL E A INTERPRETAÇÃO DO MUNDO


Hegel é um filósofo moderno por excelência. Ele pertence ao movimento, iniciado com Descartes, de alta consideração para com o sujeito. Em Descartes o sujeito é um eu. Em Kant o sujeito não é tomado por uma introspecção, como em Descartes, mas a partir de uma transformação do eu em uma instância acima do eu empírico e psicológico. Trata-se de um eu que deveria funcionar de modo racional, perfeito, sem desvios vindos das idiossincrasias da psicologia do eu empírico. Um eu assim, Kant o chamou de transcendental. Hegel deu um passo a mais. Ele colocou o sujeito em uma instância com funcionamento histórico, algo maior que o homem, que ele chamou de Espírito (Geist).
A noção de Espírito, no sentido hegeliano, nós a usamos também. Aliás, nós a temos em nossa linguagem atual segundo algumas acepções próximas das de Hegel, vindas do romantismo e do romantismo tardio. Falamos em “espírito de um povo” ou “espírito de uma época” ou “espírito da geração de 68” etc. É como se, a posteriori, captássemos o propósito do povo, da época ou da geração. Ou seja, se falamos em propósito, falamos em sujeito. Hegel viu o Espírito,Geist, como um sujeito maior que o ser do homem, um espécie de sujeito cósmico que enxergamos ao notarmos as mudanças culturais e, enfim, as alterações das instituições políticas e dos modos de organizar a produção. Esse Espírito se mostra assim, mas se faz concreto pelo pensamento e atuação do homem. Aliás, o homem é seu “cavalo” uma vez que é da mesma substância (espiritual) que ele. Todavia, embora os homens possam fazer as coisas de modo consciente e pensado, o resultado da ação individual e, principalmente, conjunta, nem sempre pode ser previsto e raramente é o que se esperava ou é possível até de ser conhecida senão a posteriori. Nem sempre o resultado satisfaz a vontade dos homens. Há aí, portanto, um sentido trágico posto sobre o mundo humano. Mas, a ação do Geist não é irracional, é racional, se vista a posteriori. Pois oGeist funciona segundo o que Hegel denominou de “astúcia da razão”. A razão acaba impondo seus fins, alguma racionalidade, no caminho traçado pelo Geist que, em certo sentido, é a própria Razão.
O que o homem pode fazer, então? O homem culto pode fazer filosofia, ou seja, vir como a Coruja de Minerva (o símbolo do saber, dos gregos) que só levanta voo no crepúsculo, para compreender e narrar o que ocorreu, o que foi a obra do Geist. A filosofia é racional exatamente por isso, porque o resultado do trabalho do Geist é racional, tem uma racionalidade, executa um propósito. E o homem pode conhecer tal propósito pondo a razão finita para compreender o que lhe é de mesma substância, a razão infinita, o núcleo do Geist. As transformações do mundo, então, são compreendidas pelo homem que faz filosofia, aquele que no crepúsculo produz a narrativa que dirá aos outros homens: “tudo que fizemos não foi em vão, veja como ao final pode-se notar um propósito”. Vamos aos exemplos.
O filósofo é o que consegue interpretar o serviço do Geist ou, em outras palavras, consegue expor uma narrativa histórica com letras filosóficas. Hegel mesmo disse: a filosofia é a captação da história em pensamento. Eis um exemplo simples: podemos pensar que a Revolução Francesa veio para trazer ao final do processo a trajetória de Napoleão, que a expandiu para toda a Europa, alterando a vida de todo o continente, aburguesando-o. Napoleão modernizou a Europa à medida que em cada lugar que chegava queimava os cartórios, apagava o passado, os títulos de nobreza e tudo o mais, e então punha o país dominado na trilha da posse de outras instituições. Ele modernizava o país, dizemos agora, como boas Corujas de Minerva. Por isso mesmo Hegel chamou Napoleão de “o Espírito a cavalo”. Assim, todo o rebuliço e caos criado por Napoleão, teve um propósito que se fez por meio de seu nome e do seu cavalgar, mas segundo a intenção do Geist e segundo a “astúcia da razão”: fazer as Luzes da Revolução Francesa produzir o mundo moderno. Pouco importa se Napoleão, o homem, chegou a vislumbrar essa sua perfeita encarnação do Geist.
Vejamos nós aqui, como parte dessa trajetória do Espírito. Nessa lógica interpretativa, D. João VI não veio para cá por acaso, ele veio por obra do Geist, que o fez fugir de Napoleão e, então, fazer do Brasil não mais colônia e sim metrópole. Ora, sem essa vinda o Brasil não teria se tornado o que se tornou hoje. Assim, um propósito do Geist se realizou, ou seja, de gerar mais um polo de civilização e da presença da razão no mundo (na América do Sul, para ser mais preciso). O Geisté então não o Deus católico que está fora do mundo, dando ordens, mas ele é a própria história e ao mesmo tempo ele é um sujeito da história, um elemento interno e externo ao mesmo tempo, e que faz a Razão acontecer e então o mundo ser o que precisa ser. Olhar o mundo assim, com propósitos, é interpretar o Geist, é interpretar o Mundo. Os filósofos sempre só fizeram isso, ou seja, eles procuram criar narrativas interpretando esse trabalho do Geist, a própria vida doGeist.
Foi contra isso que Marx se mostrou incomodado. Se os filósofos só interpretam o desdobrar da história acabam por serem espectadores de suas próprias vidas, uma vez que são produtores de cultura e, então, parte do Geist. É essa função de expectador do mundo e de si mesmo, própria de como Hegel define o filósofo, que Marx acreditou como algo datado. No máximo, um filósofo desse naipe poderia tentar entender o curso do Mundo, o trajeto posto pelo Geist, e então, como parte disso tudo, conectar-se nesse curso com uma clareza maior. Mas, ainda assim, isso não seria considerar o homem em carne e osso, o elemento material rebelde ao tal curso, o elemento efetivamente transformador – transformador no sentido de se contrapor ao curso por estar no mundo, estar de posse da razão finita interpretativa, mas não ser uma peça da própria engrenagem espiritual do mundo, do próprio Geist. No limite, tal visão (marxista) deveria até dizer: só existe a história e seus desdobramentos, e não é necessário postular umGeist na história, um propósito, algo que sirva para justifica-la na interpretação crepuscular. Ou mais no limite ainda: não há nada que justificar ao final, ou mais radicalmente: qualquer narrativa justificadora, racionalizante, é ideológica. Desse modo, ser filósofo até então seria também ser ideólogo. Ser filósofo para Marx seria tentar não ser ideólogo.
Como se pode ver aqui, muitos marxistas que repetiram a frase de Marx, tomando-a de maneira inculta, acabaram também por repetir o pensamento do qual Marx queria escapar, aquela tendência em encontrar uma razão na história a todo custo, algo que sempre foi muito perigoso, pois, não raro, o que se faz com isso é muita barbárie no altar da Liberdade.

FONTE: Paulo Ghiraldelli, 57, filósofo.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

O POBRE NO HORIZONTE DA ÉTICA COMUNITÁRIA DE ENRIQUE DUSSEL


 

O POBRE NO HORIZONTE DA ÉTICA COMUNITÁRIA DE ENRIQUE DUSSEL
 

INTRODUÇÃO

 
A realidade social desperta a reflexão sobre o modo em que as pessoas se organizam e convivem. Desde os primeiros filósofos debateu-se e refletiu-se sobre as formas de organização social. Esta pesquisa visa compreender e apresentar o que é o pobre na ética comunitária para o filósofo contemporâneo latino-americano Enrique Dussel, pensamento este que é vigente na atualidade.
Em nossa sociedade percebemos que o pobre, o oprimido não tem o seu lugar merecido, sendo muitas vezes excluído e desprezado. Esta pesquisa torna-se relevante, pois pretende, a partir do pensamento de Dussel, despertar-nos para a consciência de que existem pessoas abandonadas, excluídas, e que, por isso, urgem práticas de libertação. É uma pesquisa que sem dúvida, desestrutura-nos de nossa comodidade e inércia frente a realidade sofrida de tantos irmãos. A realidade sofrida e gritante do pobre nos interpela e nos inquieta, isto porque é o próprio Cristo que está presente no pobre.
 

A LIBERTAÇÃO DO POBRE NA ÉTICA DE ENRIQUE DUSSEL

Para Dussel a libertação do pobre é o ponto central da metafísica, que é a “passagem da ontologia ao transontológico, aquilo que situa além do ser, na realidade” (DUSSEL apud REGINA, 1992, p. 89). E a analogia tradicional havia sido colocada como uma fenomenologia, que é o “lógos pensamento a cerca daquilo que aparece”. (DUSSEL apud REGINA, 1992, p.89). A liberação acontece a partir da afirmação do outro real, existente e histórico.

 
Chamamos este momento positivo trans-ontológico (meta-físico) de partida ou ponto ativo de início da negação da negação: o analético. Queremos indicar com ana- (do grego) um “ mais além” ou transcendental ao ser. Esse logós (aná-lógos), discurso que se origina a partir da transcendência do sistema, contém a originalidade da experiência hebreu-cristã. Se “no princípio Deus criou” (Gn 1,1), é porque o outro é anterior ao próprio princípio do cosmos, do sistema, da “carne”. A “anterioridade” metafísica do outro (que cria, se revela) tem também seu momento histórico, político, erótico. (DUSSEL, 1987, p. 266).
 
Somente as pessoas que tem consciência ética são capazes de ouvir a voz do pobre, o pobre que grita, que clama que perturba o mundo com o “tenho fome” de Jesus, que também foi pobre. A percepção a respeito dos marginalizados e sofridos que me interpelam é portanto, uma exigência ética. Negligenciar ou prescindir do sofrimento dos outros é negar a voz de Deus e o clamor divino presente no outro. É necessário fazer uma distinção entre os fetiches e o Deus dos pobres. O pobre é a revelação de Deus, traz presente em si a marca de Deus. Deus manifesta-se através do pobre.
 
A voz, o clamor, a palavra do outro (dabár, em hebraico, o Verbo) irrompe em meu mundo perturbando-o; “Tenho fome!”. Do ouvir a voz do outro (ex auditu diz Trento) é que se dá a revelação de Deus. Mas Deus só pode se revelar pelo que é o outro, e não pelo sistema de pecado, não pelo “mundo”. Deus pode revelar-se essencialmente “por” e “através” do pobre. O pobre é o “lugar” da epifania de Deus (mais ainda que se revelou em Jesus, pobre, como Charles de Foucauld gosta de chamá-lo). Ouvir a voz do pobre aqui e agora  é condição de possibilidade da atualidade da revelação de Deus. A Bíblia pode ser interpretada na tradição viva da comunidade cristã particular (Puebla 373), quando é vista a partir do pobre e na sua perspectiva. Para a Teologia da Libertação, a questaão não é a possível irracionalidade de uma revelação positiva. A questão não é uma impossibilidade de Deus se revelar ao que é rico, ao que domina o pobre, ao que não se encontra na posição concreta e histórica que lhe permita ouvir a palavra de Deus, porque não tam “consiência ética”. (DUSSEL, 1987, p. 242-243)
 
A libertação só acontece quando se ouve a voz gritante do pobre. É preciso assumir, tomar sobre si este grito, como denota Dussel, este grito que nos perturba, nos inquieta a consciência. É necessária uma responsabilidade, que para Dussel “tem relação com responder por uma pessoa e não com responder a uma pergunta. Responsabilidade é (...) encarregar-se do pobre que se encontra na exterioridade diante do sistema” (REGINA, 1992, p. 90).
O que ouve a voz do pobre torna-se um aliado de Deus, que realiza a sua obra, a práxis boa, que acontece então através de uma mudança radical de vida. Esta conscientização é sem dúvida um novo nascimento, isto é, um sair-se de si, para encontrar o outro. Para acontecer a libertação é preciso morrer o egoísmo e o orgulho da pessoa velha e nascer a pessoa nova, com um  novo olhar compassivo  e atento para a realidade. A libertação é como denota Regina “é igualmente agonia do antigo para o fecundo nascimento, do novo, do justo” (1992, p. 90).
Para Enrique Dussel a libertação é o movimento metafísico ou transontológico, que está além do mundo. Com isso, é possível ver a exterioridade do outro, sua alteridade. A libertação não é somente negar a dialética da negação, não é uma simples negação do sistema.
A dominação, a alienação cobriu o rosto do pobre, como se fosse uma máscara fabricada pelo sistema. Para haver o desmascaramento e o aparecimento deste rosto é necessário mudar as instituições, a totalidade sistematizada. É preciso haver uma desaproximação do dominador do sistema, fazendo com que a pessoa se revele.
Segundo Dussel, para haver é urgente que se esteja junto, consolidar-se com o pobre, que é maltratado, que passa fome, que cheira mal, desprezado e humilhado, ridicularizado e abandonado. Ver este pobre não no sentido de oprimido, porque ele representa uma pessoa e não uma coisa, ou instrumento.
 
O “ethos” do libertador, para Dussel, estrutura-se todo em torno de um eixo essencial, que não é compaixão, nem simpatia, mas “comiseração”. Para Dussel descobrir o outro como outro é por-se junto a (com) sua misíra (a posição do outro, da pessoa que foi reduzida a um instrumento no sistema. A comiseração como a pulsão alternativa ou de justiça metafísica, é o amor ao outro como outro, por sua exterioridade, amor ao oprimido, mas não em sua situação de oprimido e, sim como lugar de esterioridade. Para Dussel, desde a comiseração se organiza o “ethos” do libertador. Dele depende a justiça libertadora, a obediência, fiel, confiante na palavra do outro; a esperança paciente e ativa da libertação do oprimido. Por ser ativa, é esperança corajosa, forte, arrojadora, que não teme dar a via no empreendimento. (REGINA, 1992, p. 91-92).
 
Deste modo fica exposto o pensamento de Enrique Dussel referente à ética comunitária como um caminho para a libertação do pobre. A consciência ética exige portanto nossa responsabilidade e o compromisso. Assim se estará construindo uma comunidade justa e solidária.
 
 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 
DUSSEL, E. Ética comunitária. 2. Ed. Tradução de Jaime Clasen. Petrópolis: Vozes, 1987.
 
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Edição pastoral. Tradução de Ivo Storniolo e Euclides Balancin. Paulus e Sociedade Bíblic Católica Internacional. 1990.
 
REGINA, J. E. M. Filosofia latino-americana e filosofia da libertação: a proposta de Enrique Dussel em relação às posições de Augusto Salazar Bondy e de Leopoldo Zea. Campo Grande: CEFIL, 1992.
 
ZANGHELINI, Laércio J. Um filosofar libertador para a educação: A perspectiva de Dussel sobre a relação professor-aluno. Dissertação apresentada como exigênica parcial para obtenção do título de Mestre. Blumenau. Universidade Regional de Blumenau, 2001.
 
ZIMMMERMANN, R. América Latina: O não ser.  2.ed. Petrópolis: Vozes, 1787.