HEGEL E A INTERPRETAÇÃO DO MUNDO
Hegel é um filósofo moderno por excelência. Ele pertence ao movimento, iniciado com Descartes, de alta consideração para com o sujeito. Em Descartes o sujeito é um eu. Em Kant o sujeito não é tomado por uma introspecção, como em Descartes, mas a partir de uma transformação do eu em uma instância acima do eu empírico e psicológico. Trata-se de um eu que deveria funcionar de modo racional, perfeito, sem desvios vindos das idiossincrasias da psicologia do eu empírico. Um eu assim, Kant o chamou de transcendental. Hegel deu um passo a mais. Ele colocou o sujeito em uma instância com funcionamento histórico, algo maior que o homem, que ele chamou de Espírito (Geist).
A noção de Espírito, no sentido hegeliano, nós a usamos também. Aliás, nós a temos em nossa linguagem atual segundo algumas acepções próximas das de Hegel, vindas do romantismo e do romantismo tardio. Falamos em “espírito de um povo” ou “espírito de uma época” ou “espírito da geração de 68” etc. É como se, a posteriori, captássemos o propósito do povo, da época ou da geração. Ou seja, se falamos em propósito, falamos em sujeito. Hegel viu o Espírito,Geist, como um sujeito maior que o ser do homem, um espécie de sujeito cósmico que enxergamos ao notarmos as mudanças culturais e, enfim, as alterações das instituições políticas e dos modos de organizar a produção. Esse Espírito se mostra assim, mas se faz concreto pelo pensamento e atuação do homem. Aliás, o homem é seu “cavalo” uma vez que é da mesma substância (espiritual) que ele. Todavia, embora os homens possam fazer as coisas de modo consciente e pensado, o resultado da ação individual e, principalmente, conjunta, nem sempre pode ser previsto e raramente é o que se esperava ou é possível até de ser conhecida senão a posteriori. Nem sempre o resultado satisfaz a vontade dos homens. Há aí, portanto, um sentido trágico posto sobre o mundo humano. Mas, a ação do Geist não é irracional, é racional, se vista a posteriori. Pois oGeist funciona segundo o que Hegel denominou de “astúcia da razão”. A razão acaba impondo seus fins, alguma racionalidade, no caminho traçado pelo Geist que, em certo sentido, é a própria Razão.
O que o homem pode fazer, então? O homem culto pode fazer filosofia, ou seja, vir como a Coruja de Minerva (o símbolo do saber, dos gregos) que só levanta voo no crepúsculo, para compreender e narrar o que ocorreu, o que foi a obra do Geist. A filosofia é racional exatamente por isso, porque o resultado do trabalho do Geist é racional, tem uma racionalidade, executa um propósito. E o homem pode conhecer tal propósito pondo a razão finita para compreender o que lhe é de mesma substância, a razão infinita, o núcleo do Geist. As transformações do mundo, então, são compreendidas pelo homem que faz filosofia, aquele que no crepúsculo produz a narrativa que dirá aos outros homens: “tudo que fizemos não foi em vão, veja como ao final pode-se notar um propósito”. Vamos aos exemplos.
O filósofo é o que consegue interpretar o serviço do Geist ou, em outras palavras, consegue expor uma narrativa histórica com letras filosóficas. Hegel mesmo disse: a filosofia é a captação da história em pensamento. Eis um exemplo simples: podemos pensar que a Revolução Francesa veio para trazer ao final do processo a trajetória de Napoleão, que a expandiu para toda a Europa, alterando a vida de todo o continente, aburguesando-o. Napoleão modernizou a Europa à medida que em cada lugar que chegava queimava os cartórios, apagava o passado, os títulos de nobreza e tudo o mais, e então punha o país dominado na trilha da posse de outras instituições. Ele modernizava o país, dizemos agora, como boas Corujas de Minerva. Por isso mesmo Hegel chamou Napoleão de “o Espírito a cavalo”. Assim, todo o rebuliço e caos criado por Napoleão, teve um propósito que se fez por meio de seu nome e do seu cavalgar, mas segundo a intenção do Geist e segundo a “astúcia da razão”: fazer as Luzes da Revolução Francesa produzir o mundo moderno. Pouco importa se Napoleão, o homem, chegou a vislumbrar essa sua perfeita encarnação do Geist.
Vejamos nós aqui, como parte dessa trajetória do Espírito. Nessa lógica interpretativa, D. João VI não veio para cá por acaso, ele veio por obra do Geist, que o fez fugir de Napoleão e, então, fazer do Brasil não mais colônia e sim metrópole. Ora, sem essa vinda o Brasil não teria se tornado o que se tornou hoje. Assim, um propósito do Geist se realizou, ou seja, de gerar mais um polo de civilização e da presença da razão no mundo (na América do Sul, para ser mais preciso). O Geisté então não o Deus católico que está fora do mundo, dando ordens, mas ele é a própria história e ao mesmo tempo ele é um sujeito da história, um elemento interno e externo ao mesmo tempo, e que faz a Razão acontecer e então o mundo ser o que precisa ser. Olhar o mundo assim, com propósitos, é interpretar o Geist, é interpretar o Mundo. Os filósofos sempre só fizeram isso, ou seja, eles procuram criar narrativas interpretando esse trabalho do Geist, a própria vida doGeist.
Foi contra isso que Marx se mostrou incomodado. Se os filósofos só interpretam o desdobrar da história acabam por serem espectadores de suas próprias vidas, uma vez que são produtores de cultura e, então, parte do Geist. É essa função de expectador do mundo e de si mesmo, própria de como Hegel define o filósofo, que Marx acreditou como algo datado. No máximo, um filósofo desse naipe poderia tentar entender o curso do Mundo, o trajeto posto pelo Geist, e então, como parte disso tudo, conectar-se nesse curso com uma clareza maior. Mas, ainda assim, isso não seria considerar o homem em carne e osso, o elemento material rebelde ao tal curso, o elemento efetivamente transformador – transformador no sentido de se contrapor ao curso por estar no mundo, estar de posse da razão finita interpretativa, mas não ser uma peça da própria engrenagem espiritual do mundo, do próprio Geist. No limite, tal visão (marxista) deveria até dizer: só existe a história e seus desdobramentos, e não é necessário postular umGeist na história, um propósito, algo que sirva para justifica-la na interpretação crepuscular. Ou mais no limite ainda: não há nada que justificar ao final, ou mais radicalmente: qualquer narrativa justificadora, racionalizante, é ideológica. Desse modo, ser filósofo até então seria também ser ideólogo. Ser filósofo para Marx seria tentar não ser ideólogo.
Como se pode ver aqui, muitos marxistas que repetiram a frase de Marx, tomando-a de maneira inculta, acabaram também por repetir o pensamento do qual Marx queria escapar, aquela tendência em encontrar uma razão na história a todo custo, algo que sempre foi muito perigoso, pois, não raro, o que se faz com isso é muita barbárie no altar da Liberdade.
FONTE: Paulo Ghiraldelli, 57, filósofo.