A LIBERTAÇÃO DO POBRE EM OSCAR ROMERO
Numa perspectiva romeriana à luz dos filósofos
Enrique Dussel e Ernst Bloch
Manoel de Pádua Paiva Morais
1. O POBRE EM
OSCAR ROMERO E A LIBERTAÇÃO DUSSELIANA
Beato Dom Oscar Romero, arcebispo de San
Salvador, El Salvador, América Central, assassinado junto ao altar e próximo a
seu povo, na capela do Hospital da Divina Providência, no dia 24/03/1980, é um
representante do cristianismo da América Latina. O pensamento do Beato Óscar
Romero e sua prática libertadora esta historicamente comprometida com a causa
dos pobres e é a melhor leitura para compreendermos o espírito de Romero.
Afastando-se dessa óptica, o leitor se afasta do próprio arcebispo salvadorenho.
Nosso estudo, então, dirige-se para o final da década de 1970 e, ao mesmo
tempo, para nosso contexto de hoje. São épocas bem diversas em muitos aspectos,
mas que registram importantes semelhanças, particularmente no tocante à
realidade dos pobres.
A
comunhão entre o pastor e seu sofrido rebanho, a que Romero acompanha e visita
com frequência, torna-se, contudo, sempre mais profunda. E, ao invés de se
intimidar, é aí que Romero se agiganta. O homem tímido, espontaneamente
conservador, mostra-se imbatível na defesa de seu povo empobrecido e vitimado
por tamanha violência (SILVA, 2012, p. 57)
A proximidade permite
a Romero conhecer de perto a vida, as alegrias e o sofrimento de seu povo,
muitos rostos e encontros face a face. Aproximar-se de quem está à margem, ir a
seu encontro para servi-los, esse é o apelo do cristianismo do Beato. Ele vive com
vigor, e por isso se declara conhecedor das feridas do povo de San Salvador. A
palavra libertação atualmente não está em uso e a mesma pode ser
inadequada ou ultrapassada, por estar associado a um determinado tempo
histórico. Todavia, a reflexão é além de um problema conceitual. A presença dos
pobres e sua morte nunca deixaram de ser atual.
Encontramo-nos numa
nova sociedade onde a era da informação, era digital, a pós-modernidade, as
transformações tecnológicas e culturais, evidenciam uma nova etapa
civilizatória. No entanto, para os pobres, as grandes revoluções técnicas significam
o aumento do número de excluídos.
Os
rostos dos pobres hoje podem ser novos, mas permanece o princípio: que os
pobres tenham vida. É aqui que localizamos o núcleo, o eixo a partir do
qual temos acesso a uma interpretação de Romero que condiz com a sua
experiência mais profunda. E a interrogação agora, pertinente também para o
século XXI, é: como continuar hoje a ser Igreja, a fazer teologia, a organizar
uma sociedade, segundo o bem dos
pobres? (SILVA, 2012, p.196)
A pertinência das
reflexões do filósofo Enrique Dussel para a libertação do pobre consiste em
frisar o sofrimento do outro, a causa de uma realidade escondida em que o
sujeito nega o outro. Ademais, sua libertação reflete sobre a relação entre o eu
e o outro na sociedade, debatendo a questão da exclusão social. A partir
disso, analisamos criticamente o discurso latino-americano de Romero e a superação
do irracionalismo moderno por meio da razão crítico-libertadora.
A
experiência da proximidade entre pessoas como pessoas é que constitui o outro
como “próximo” (próximo, vizinho, alguém), como outro; e não como coisa,
instrumento, mediação. A práxis, então, na atualização da proximidade,
da experiência de ser próximo para o próximo, de construir o outro como pessoa,
como fim de minha ação e não como meio: respeito infinito (DUSSEL, 1987, p.
19).
Para o filósofo da
libertação a pessoa só se torna pessoa quando esta frente a outra pessoa, num
face-a-face, num rosto a rosto, numa relação prática, onde a pessoa é alguém
para a outra, não como uma simples coisa. É nesta relação face-a-face de duas
ou mais pessoas, que acontece a práxis.
Os
extremos da “relação” prática são pessoas. O que é ser pessoa? Alguém é
pessoa, estritamente, só e quando está na relação da práxis. Uma pessoa
é pessoa quando esta ante outra pessoa ou pessoas. Quando está só perante a
natureza cósmica, de certo modo deixa de ser pessoa. (DUSSEL, 1987, p. 19).
O Método da Filosofia
da Libertação terá seu ponto de partida no princípio da alteridade, onde
o pressuposto desse método estabelece que o discurso filosófico tem um caráter
eminentemente ético, para além da dimensão puramente lógica. O discurso é
válido ou inválido não pôr sua correção lógica, mas por seu acordo ou desacordo
com a justiça. Torna-se evidente que neste artigo, não teríamos espaço para
detalhar todo o escopo do pensamento dusseliano, mas sim, desenvolver seus
principais postulados a partir das categorias alienação e libertação e
suas implicações para a questão do outro. Para Dussel, a alienação consiste
no fato de tomar o outro enquanto instrumento, isto é, enquanto um ser que serve
de mediação para a realização das vontades do outro, aniquilando a semelhança e
a distinção.
É
o outro em seu grito, em seu clamor, em sua dor que nos pro-voca (nos chama de lá adiante), nos con-voca (nos chama para ele em sua ajuda),
nos interpela (exige explicações de um fato, cita ou chama testemunhas ante a
realidade de sua pobreza). Ele imediatamente nos aparece como alguém que tem
direitos. (DUSSEL, 1986, p. 52).
A libertação só acontece quando se ouve a voz
gritante do pobre. É preciso assumir, tomar sobre si este grito, como denota
Dussel, este grito que perturba, inquieta a consciência. É necessária uma
responsabilidade, que para o filósofo, esta acção é sem dúvida um novo
nascimento, isto é, um sair-se de si, para encontrar o outro.
2. O CONTEXTO
DO BEATO DOM OSCAR ROMERO À LUZ ESPERANÇA CONCRETA EM BLOCH
A utopia faz parte da estrutura histórica do
homem e é este um dos pilares do filósofo alemão Ernst Bloch. Portanto, uma reflexão
aberta à realidade latino-americana, permitindo que, como interlocutor,
possamos nos situar quanto à prática utópica dos que lutam por mudanças
qualitativas da sociedade. Assim, para que possamos entender o vigor até o
martírio de Oscar Romero, é preciso, que analisemos detalhadamente o conceito
de esperança concreta, deixando de lado concepções idealistas, onde o futuro é
aguardado sem que o presente seja levado em consideração. Na fórmula blochiana:
a razão não consegue florescer sem a esperança, a esperança não consegue falar
sem a razão, indica assim, o papel ativo da esperança esperada. A esperança
pelo ainda não-ser implica num engajamento para sua real e possível
concretização, mediado, por conseguinte, por uma ativa e racional esperança.
E enquanto a realidade não
for completamente determinada, enquanto ela contiver possibilidades inconclusas
em nossas germinações e novos espaços de conformação, enquanto for assim, não
poderá proceder da realidade meramente fática qualquer objeção absoluta contra
a utopia (BLOCH, 2005, p. 195).
A proposta de Oscar Romero, sobretudo em sua
estrutura de libertação, rompe com o sistema que oprime e faz dos indivíduos
meros anônimos diante da máxima exploração e do lucro. Assim sendo, a
prioridade do governo salvadorenho consistia em afirmar as relações mediante a
lógica da opressão. Esta se apropria de mecanismos econômicos e sociais para
desempenhar a função de dominar as ações das pessoas negando a coletividade,
tornando-os seres fragmentados, e dessa forma, utilizando o outro como
instrumento a favor do fluxo do capital. Deste modo, temos como conclusão
específica deste processo a situação em que os bens gerados pela economia salvadorenha
beneficiavam a minoria, massacrando a maioria dos cidadãos.
A verdadeira gênese não se
situa no começo, mas no fim, e ela apenas começará a acontecer quando a
sociedade e a existência se tornarem radicais, isto é, quando se aprenderem
pela raiz. Porém, a raiz da historia é o ser humano trabalhador, produtor, que
remodela e ultrapassa as condições dadas. Quando ele tiver apreendido a si
mesmo e ao que é seu sem alienação, surgirá no mundo algo que brilha para todos
na infância e onde ninguém esteve ainda: a pátria (BLOCH, 2006, p. 462).
Romero consciente de que a exclusão e a opressão
se devia a causas estruturais que exigiam solução também estrutural. Denuncia e
desmascara as injustas que causam miséria e repressão, e não teme pôr em risco a
própria vida e a segurança da Igreja. Frente a tantas e tamanhas iniquidades
que atentavam à vida, o Beato Romero experimenta a indignação, mas, sobretudo,
faz da compaixão e da misericórdia para com o povo que sofre o princípio diretriz de toda sua atuação.
O arcebispo de San Salvador reafirmou sua convicção como homem da esperança,
oportunizando o protagonismo dos salvadorenhos como partícipes da transformação
social.
Caminhando com seu povo,
Romero animava-o na esperança. Passará esta hora de prova e permanecerá
refulgente o ideal pelo qual morreram tantos cristãos. Mas já se vislumbra a
liberdade de um povo oprimido. As
circunstâncias do país não devem apagar, mas reavivar ainda mais a chama da
esperança e da fé. (SILVA, 2002, p. 54)
Em Bloch o princípio esperança, consiste num
instrumento objetivo para o homem construir um futuro concreto. Se o futuro
ainda-não-é-acontecido, como se esperar pelo que não é, numa esperança correta? Donde se pode inferir que, se o futuro não é algo que passivamente deve
ser esperado, há um elemento que intervém na esperança, orientando-a: a razão. A
análise dos princípios originários da esperança permite-nos compreender que ela
é constitutiva do ser humano, não como uma espécie de essência abstrata, mas
sim acontecendo na prática social daqueles que buscam modificar o estado de
coisa vigente. Assim, a esperança concreta é fundada na realidade humana, sem,
contudo, negar as contradições que pertencem à própria condição histórica do
homem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Romero fora a voz dos sem voz e deu o melhor de si para que os pobres
recuperassem eles mesmos a palavra que lhes fora roubada. Beato Oscar se
aproximou, acompanhou, e por isso soube ouvir o que os pobres tinham a dizer. Por
isso é que consideramos capital a pergunta: como continuar afirmando essa
centralidade dos pobres hoje, no novo
contexto de nossos dias? Trata-se não só de perguntar pela opção
e critério romeriano acerca dos pobres, mas de nos perguntarmos sobre o sempre desta
opção e critério, sobre sua atualidade para nós. E, por consequência,
questionarmos a nós mesmos: como assumir esse critério no contexto que é o nosso
hoje? Como optar em fazer filosofia e teologia à luz de Romero no século XXI?
A partir da reflexão vigente indicamos que a
relevância dos referenciais e categorias trabalhadas por Dussel e Bloch possuem
muitas complementaridades e convergências para a crítica, uma vez que, suas
compreensões de homem-mundo são vitais para a posição epistemológica assumida
por esta. Para a perspectiva crítica em que ambos se inserem, a práxis de
dominação não reconhece a alteridade. O outro deixa de ser importante para
tornar-se coisa. O agir da opressão, ao negar o Outro como outro, incorpora-o
num sistema que o aliena e a possibilidade em transformarmos as formas como nos
relacionamos com a natureza, o que implica, nos relacionarmos com a humanidade.
A afirmação da esperança concreta será
tanto quanto mais possível numa nova postura da comunidade humana que, partindo
dos referenciais do Beato Oscar Romero na prática do face a face, de uma
experiência própria do falar e do escutar, terá como consequência a libertação
do pobre numa perspectiva ética social.
Em 24 de maio de 2015 se realizou a
beatificação de dom Oscar Arnulfo Romero Galdámez. A missa, celebrada na Praça
do Divino Salvador do Mundo, reuniu mais de 250 mil fiéis, e foi presidida pelo
representante do papa Francisco, cardeal Angelo Amato, prefeito da Congregação
para as Causas dos Santos.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BLOCH, E. O princípio
esperança. Tradução e notas
Nélio Schneider. Rio de Janeiro: EdUERJ:
Contraponto, 2005.
______. O princípio
esperança. Vol. 3. Tradução e notas Nélio Schneider. Rio de Janeiro:
EdUERJ: Contraponto, 2006.
DUSSEL, E. Método para uma
Filosofia da Libertação. São Paulo: Loyola, 1986.
_________. Ética comunitária. Tradução
de Jaime Clasen. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
SILVA M., R. Sempre o bem
dos pobres: O pastor Oscar Romero, o teólogo Jon Sobrino e o povo salvadorenho (UM TRÍPTICO ECLESIAL E SUA
ATUALIDADE PARA O SÉCULO XXI) . 2012.
303 f. Tese (Doutorado em Teologia) INSTITUTO ECUMÊNICO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
TEOLOGIA, ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA, São Leopoldo. 2012.
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