domingo, 25 de maio de 2014

Qual são as diferenças de princípios nas culturas punitivas e restaurativas? Por Dr. Antônio Ozório

Qual são as diferenças de princípios nas culturas punitivas e restaurativas?


Área de Atenção
Cultura Punitiva
Cultura Restaurativa
Foco de Apuração
Identificar quem errou
Identificar necessidades não atendidas
Foco de Resposta
“Reeducar”, disciplinar à força
Restaurar harmonia dos envolvidos
Aspecto Escolar 
Manter o controle
Restabelecer o equilíbrio
            

  Aos poucos os dirigentes escolares e professores verificarão que é bem possível conciliar as práticas restaurativas como uma nova filosofia na disciplina escolar. Com o tempo, os envolvidos na realidade escolar notarão uma sensível melhoria nas relações e o impacto que isto tem na dinâmica de ensino-aprendizagem. Por isso, é preciso acreditar e ter paciência para verificar o potencial das mudanças. Ademais, os envolvidos no processo de construção das práticas restaurativas têm que estar cientes de que o processo não é rápido e deve ser construído gradualmente.

                        Possíveis perguntas dos dirigentes escolares: 
Mas não haverá mais punição? O aluno pratica uma falta grave e o que há é apenas uma conversa? O que fazemos com as regras escolares? Como acreditar em algo que nunca vi funcionando? Este é mais um daqueles projetos que começa e termina sem que saibamos direito o que é? E o tempo para desenvolver as práticas restaurativas?

Quais são os princípios fundamentais das reuniões restaurativas (ou círculos restaurativos)?
                
Busca-se a transformação das partes conflitantes; círculo restaurativo é uma alternativa que confere o espaço-tempo para as partes envolvidas num conflito efetivarem consensos pacificadores através da Comunicação Não-Violenta.
1. Reunião de todas as pessoas envolvidas direta ou indiretamente pelo conflito (partes conflitantes, familiares, professores, comunidade, etc) ou de instituições que pertençam a redes de atendimento.
2. Participação de todos na resolução do conflito e compartilhamento da responsabilidade por todas as partes afetadas.
3. Reintegração na comunidade daqueles que criaram uma situação de ruptura e dos outros que, afetados por um conflito, se sentiram oprimidos na fluidez de suas relações sociais, evitando-se revitimizações; mas também a reintegração preventiva, vale dizer, a prevenção contra processos de exclusão e de marginalização, através de políticas inclusivas, que evitem estigmatizações e permitam a tomada das pessoas em sua inteireza, não pelos atos cometidos ou por determinada característica de comportamento, de raça etc
4. Os valores da reciprocidade e da cooperação são estimulados, possibilitando o resultado de ganha-ganha. Procura-se a reparação dos danos, analisar as conseqüências do conflito e o atendimento das necessidades de todos os afetados, buscando restaurar as relações afetadas e evitar outro conflito no futuro;

PRÁTICAS RESTAURATIVAS NAS ESCOLAS, POR DR. ANTONIO OZÓRIO

Texto básico sobre práticas restaurativas nas escolas 

por Dr. Antonio Carlos Ozório Nunes

 
1. O que são práticas restaurativas nas escolas?
As Práticas Restaurativas nas escolas refletem uma filosofia que abrange um conjunto de comportamentos, procedimentos e práticas proativas que buscam desenvolver as boas relações no espaço escolar. Elas dão um destaque especial no desenvolvimento de valores essenciais às crianças e aos jovens, tais como o respeito, a empatia, a responsabilidade social e a autodisciplina.As práticas restaurativas nas escolas poderão ser usadas em dois níveis: primário e secundário. O nível primário busca melhorar o relacionamento escola-família-comunidade, fortalecer o diálogo entre todos, promover a melhoria do ambiente escolar, a comunicação não-violenta, as atividades pedagógicas restaurativas ou, em suma, construir um trabalho pró-ativo de comunidade escolar segura, democrática e respeitável, numa cultura de paz. Destina-se a reafirmar as relações. O nível secundário é usado para a restauração e reparação das relações através do diálogo, da comunicação não-violenta e das reuniões restaurativas (mediações e círculos restaurativos). O foco do nível secundário está em reconectar, consertar e reconstruir relações. 2. De onde surgiu a filosofia das Práticas Restaurativas?As Práticas Restaurativas originaram-se do modelo de Justiça Restaurativa, cuja filosofia surgiu inicialmente dentro do campo da justiça criminal e basearam-se em práticas oriundas de comunidades indígenas, principalmente do Sudeste Asiático e do Canadá. Hoje as Práticas Restaurativas estão ganhando reconhecimento e aplicação na área da Educação e em outros campos da vida social.
Nas escolas, as Práticas Restaurativas vem ganhando, cada vez mais, espaço em todo o mundo, seja visando a prevenção de indisciplinas e violências nas escolas, seja para lidar com uma gama de conflitos escolares, desde os mais simples até os mais sérios. No Brasil, o programa tem se ampliado para vários municípios e a Rede Estadual de Educação do Estado de São Paulo tem incentivado a implantação e ampliação dos Círculos Restaurativos em diversos municípios.
 3. Por que as Práticas Restaurativas são importantes nas escolas?Nas escolas, os princípios e valores das práticas restaurativas têm se revelado importantes para criar uma cultura de diálogo, respeito mútuo e de paz. As práticas restaurativas possibilitam uma melhoria nos relacionamentos de forma a alterar os seguintes paradigmas: elas levam a mudanças diretas no campo das inter-relações; mostram aos envolvidos uma abordagem inclusiva e colaborativa, que resgata o diálogo, a conexão com o próximo, a comunicação entre os atores escolares, familiares, comunidades e redes de apoio; guiam as pessoas a lidarem com os conflitos de forma diferenciada, pois ao desafiar tradicionais padrões punitivos, passa-se a encarar os conflitos como oportunidades de mudança e de aprendizagem, ressaltando os valores da inclusão, do pertencimento, da escuta ativa e da solidariedade.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Diálogo: A “pedra fundamental” da democracia

A palavra democracia, no contexto moderno, está sempre em voga. Ela está associada a um imaginário social tão positivo que dificilmente você vai encontrar uma pessoa que diga abertamente “sou contra a democracia”. Todavia, se é algo tão bom assim e todos concordam ela, por que é tão difícil de implementá-la?

Inicialmente, é necessário debruçar-se sobre o conceito de democracia. Inicialmente podemos conceituá-la genericamente como: “ Tradição política que pauta-se na soberania popular exercida por efetiva participação social confrontadas por argumentos racionais”. Assim sendo, confronto é sinônimo de democracia? Não necessariamente, porque democracia é sobretudo diálogo. Mesmo com toda essa complexidade conceitual sem essa simples palavra, não há base sólida para democracia.

Antes de pensar a nível das instituições, vamos pensar no plano das micro relações. Você e seu colega, por exemplo, são políticos independentemente de terem cargo político ou não. Obviamente vão divergir em algum momento porque têm diferentes interesses e opiniões, e isso pode levar a um confronto político.

Há duas maneiras de resolver tal confronto: 1- pelo conflito pessoal; 2- pelo diálogo consensual.
Pelo conflito pessoal as ideias vão ficar num plano secundário e a discussão vai partir para difamação pessoal, as vezes de maneira indireta na forma de “fuxico” e de “foFoca”. Além disso, o problema não será resolvido e as tensões serão aumentadas.
Pelo diálogo racional consensual, a crítica vai ser direcionada no plano das ideias com argumentações lógico-racionais até que se chegue num encaminhamento prático. Pode até haver confronto, mas das ideias e não das pessoas. Entretanto, esse confronto, para ser democrático, deve ser mediado obrigatoriamente e fundamentalmente através do diálogo racional, que através do qual levará a uma contribuição, seja uma solução ou um aprendizado.
Atire a primeira pedra quem nunca se deixou levar pelo primeiro exemplo, o que é um descaminho que nos afasta da democracia. Porém, a mesma mão que ora apedrejou ao outro pode, juntamente com o outro, fomentar a pedra fundamental do diálogo.

Democracia exige diálogo, diálogo exige maturidade,  esta por sua vez, exige racionalidade. Portanto, já dialogou com as pessoas ao seu redor? Discorda das opiniões, das administrações e das posturas políticas no nosso país? Já procurou as pessoas responsáveis para dialogar para através disso chegar a um encaminhamento?
 Se sua opção for o conflito pessoal, na democracia isso te faz um dos principal prejudicado. Se não direcionarmos buscarmos a pedra fundamental da democracia, toda a estrutura ficará comprometida e os todos escombros cairão sobre nós.

fonte: http://www.cafecomsociologia.com/2014/05/dialogo-pedra-fundamental-da-democracia.html

Dez falsas afirmações sobre Sócrates

POR  PAULO GHIRALDELLI JUNIOR

1. Sócrates usava a maiêutica. Não, Sócrates usava o elenkhós. A maiêutica, apesar de famosa, é uma invenção do Sócrates do Platão, e aparece muito pouco na obra platônica. Aliás, não é conciliável com o elenkhós (como pensa Marilena Chauí, erradamente).

2. Sócrates disse “Só sei que nada sei”. Não! Sócrates disse que não sabia sobre o que perguntava aos atenienses, e não algo tão geral quanto essa frase.
3. Sócrates nunca escreveu nada. Provavelmente, uma mentira. Sócrates nunca escreveu nada, até onde sabemos, de filosofia. Mas escreveu outras coisas. Há por exemplo a observação dele estar compondo poemas na prisão.
4. Sócrates foi o autor da frase “conhece-te a ti mesmo”. De modo algum. Essa frase pertencia ao Templo de Apolo, em Delfos, e vinha seguida de outras.
5. Sócrates foi o filósofo que favoreceu a razão contra o mito (ou Sócrates era ateu). Sócrates era religioso. Ele foi um devoto do “deus do Templo (de Apolo)”. Ele não filosofou contra a religião, mas por indicação religiosa. Ele via seu filosofar como missão do deus para com Atenas.
6. Sócrates usava da ironia como método. Não! A ironia socrática é algo próprio da sua conversação e não tinha nenhuma função didática ou metodológica tão expressa quanto se diz. Aliás, há helenistas que tentam mostrar que a ironia, no sentido moderno da palavra, é uma criação de Sócrates-Platão (Vlastos faz isso).
7. Sócrates foi condenado por Atenas porque fez a juventude pensar. Afirmação ingênua. O processo de Sócrates envolve elementos de várias ordens. Ele fez desafetos políticos e, também, inaugurou nova forma de religiosidade.
8. Sócrates foi humilde com o “só sei que nada sei”. Sócrates não era humilde por uma razão simples: nenhum grego conheceu a humildade como nós a pensamos. A noção de humildade é do cristianismo tardio. Sócrates combateu a hubris grega, e essa tem a ver com o orgulho, sim, mas é o orgulho no sentido da desmedida, de se fazer mais capaz que tudo. Ninguém pode ser mais capaz que a divindade, diria Sócrates.
9. Sócrates era homossexual. Cuidado!  Cabe para o grego a noção de homoerotismo, devidamente qualificada no sentido do namoro entre homens de diferentes idades, a serviço da pederastia. Sócrates-Platão subverteu a pederastia clássica, pois ousou introduzir pré-requisitos nessa pederastia, exigindo mais que a troca de favores sexuais do jovem com o cidadão.
10. Sócrates era um filósofo com conhecimentos vários. Não! Sócrates jamais usou a filosofia para o campo das matemáticas ou ciências. Quando assim fez, ele já era personagem de Platão. O Sócrates histórico deixou claro que seu filosofar era no campo moral e que no campo da investigação “sobre o Céu” ele nada entendia e acha que nem era produtivo tal investigação.
© 2011 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ

FONTE: http://ghiraldelli.pro.br/filosofos/dez-falsas-afirmacoes-sobre-socrates/

O QUE É A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO?


Crystal-Palace-from-the-northeast-from-Dickinsons-Comprehensive-Pictures-of-the-Great-Exhibition-of-1851-1854
O mundo do capitalismo transforma produtos em mercadorias. A mercadoria tem um poder especial, ou seja, ela é o produto que circula e se dispõe no mercado. Uma vez no mercado ela é valorizada por seu valor de mercado – daí o nome: mercadoria. Neste, o mercado, seu valor é o valor de troca, não o de uso. E a troca se faz por equivalente. Coisas não iguais perdem suas características e são tornadas “iguais”. Iguais pelo símbolo matemático “=”. Isso porque há um elemento que iguala troca de mercadorias: o dinheiro. Eis aí, grosseiramente, o segredo desvendado por Marx quanto ao que é a base da transformação da vida moderna por meio do capitalismo.
O que ocorre nessa troca de equivalentes? Ocorre que quando o mercado se universaliza como sendo a principal das relações entre todos, ele invade todo o campo da vida e impõe ao homem sua lógica, sua feição, seu estilo: a vida é mensurada pelo equivalente, ou seja, pela troca do que pode ser igual, igualado, descaracterizado de suas feições particulares. Uma vaca é substituída por um número, o dinheiro, e este número pode abocanhar um carro. Nesse sentido o carro fica igual, ou melhor, equivalente, a uma vaca. Vaca e carro e tudo o mais é o abstrato dinheiro, o igual – o até então inigualável, agora é simplesmente, por uma passe que pareceria mágica, igualado.
O mundo então adquire a feição prometida pela política da modernidade: a democracia. Nela todos são iguais. Ora, é o mercado, portanto, alguém que pode se aproximar da democracia, também ele iguala! Aos poucos tudo é regido pelo sinal “=”, tudo é equacionável, ou seja, vira equação, a forma de deixar as coisas com a única feição, a feição do abstrato, do intercambiável. É nesse sentido que o mundo do capitalismo desfaz as diferenças. O mundo do capitalismo, o mundo da sociedade de mercado, rompe com hierarquias e diferenças, de modo que se chega à central e perigosa monstruosidade: o não-diferenciado. Eis então a oportunidade eliminar diferenças entre original e cópia, entre autêntico e inautêntico. Nessa situação o palco montado para que se perca a noção do que é a imagem (a cópia) e o real (ou seja, o que dá origem à cópia) se ergue e efetivamente o mundo do indiferente se faz valer.
Quando se chega nisso, estamos então na sociedade do espetáculo. Pois tudo é “para os olhos”, para ser visto e, portanto, tudo é imagem; assim sendo, como mera cópia, se passa tranquilamente pelo próprio real. Pois ninguém sabe se é o real ou se é cópia que está ali como espetaculum, o que se fita. É nesse sentido que há a sociedade do espetáculo, ou seja, a sociedade da imagem, do que é representação. As imagens podem ser o real e o real pode ser imagem. A mídia nada faz senão ampliar isso ao máximo. Ela não produz essa sociedade, ela é apenas a tecnologia adaptada, ou a tecnologia melhor adaptada, ao que é o espetáculo – ela é o que é melhor adaptado à sociedade do espetáculo. Olhando para ela, pode-se dizer: essa sociedade só poderia mesmo ter essa tecnologia, essa mídia!
O jornalismo que se faz por meio dessa mídia torna-se facilmente a troca sem hierarquias de imagens: o ursinho panda nasceu, viva, e agora milhares morreram no Afeganistão e, então, que se foda a Petrobrás. É isso vemos William Waack balbuciar, preso à lógica do “mais do mesmo”.
Desse modo, é um erro pensar na mídia como autora de um processo, o espetáculo, ao menos segundo a análise marxista. Ela é um elemento de ampliação da repetição das imagens, mas a indistinção entre cópia e original que permite que exista tudo como imagem, como o que é “para os olhos”, já está feita sem a mídia. É o capitalismo que produz isso. Ele produz igualando não iguais, cópia e real, e isso não é outra coisa senão a banalização de tudo.
Quando a mídia cria a indistinção em escala gigantesca, aí sim ele reforça o processo do qual nasceu. Ele troca o espetáculo por uma específica forma do espetáculo: as imagens efetivamente como real. O real é imagem, diz Heidegger a respeito da sociedade moderna., por que tudo se torna objeto já que algo se torna sujeito – o homem é transformado em sujeito, em subjectum, em palco do mundo. Mas o marxismo diz isso segundo um critério um pouco diferente: o real é imagem porque antes a imagem tomou o lugar do real por meio da preponderância de uma forma de organizar a produção, a circulação e o consumo. A mídia acelera e amplia essa confusão entre imagem e real e abre espaço para o tédio, para a deserotização. Tudo é sem hierarquia, tudo é igual, tudo é para ser visto segundo o critério do “mais do mesmo”. Eis então que nada mais tem encanto, nada mais tem aura (assim diríamos se seguíssemos Walter Benjamin), tudo efetivamente se racionaliza em um sentido muito peculiar e técnico da palavra racionalizar: o mundo desencantado de Weber efetivamente emerge nisso, e o homem é mesmo, então, o “especialista sem inteligência e o hedonista sem coração”. Desse modo, apenas ferroadas momentâneas ainda não nos deixa em total estádio do ópio mortal. Fora elas, as ferroadas momentâneas, não nos saberíamos como vivos, se é que estamos vivos.
Crystal-Palace-from-the-northeast-from-Dickinsons-Comprehensive-Pictures-of-the-Great-Exhibition-of-1851-1854
Crystal Palace: Picture of the Great Exhibition of 18511854
Numa sociedade assim, em que todos dormem, para seguir aqui a fala de Guy Debord, a sociedade do espetáculo cumpre seu destino, eleva o tédio ao máximo e pede, para que saiba que se está dormindo e não morto, que de vez em quando alguém aumente a dose de ferroadas. Fazemos como as ferroadas para “acordar” o que se faz com a droga excitante: “mais do mesmo”, já que o o mesmo do mesmo não faz mais efeito. Desse modo, só é notícia aquilo que não for “mais do mesmo”, mas “muito mais do mesmo”. A tragédia de ontem não serve, é preciso a mesma tragédia, mas em um grau mais avassalador. A morte precisa ser mais horrenda e em maior escala. Pode ser limpa, mas precisa voltar a correr na lógica da ampliação em alguns de seus traços. Só assim há chance do tédio ser quebrado por alguns segundos e o sono poder ganhar, nesse tempo curto, o caráter de sono mesmo e não de morte.  Ficamos sabendo que estamos vivos por isso. Mas até isso é tedioso pois é repetitivo, pois logo morremos para acordar em seguida. O próprio processo de aumento da ferroada tem limite, e então caímos definitivamente em sono profundo. Um coma induzido!
Mas e se não temos essa ferroada? Então nós mesmos nos aferroamos, mas também de modo falso. Como? Nós agora somos a mídia, criamos nossa imagem, nossos selfies; geramos nossa disposição para dizer que estamos ali comendo uma macarronada ou comendo uma mulher, e por isso, por sermos possíveis imagens, temos a chance de ser alguma coisa, entramos no jogo do que pode, por alguns segundos, ser apontado como estando vivo. Somos isso se a mídia nos transporta, colocando-nos no declarado real: o palco das imagens, que é o olho do homem enquanto olho da mídia, o olho da rede social em questão. Perversamente Heidegger diz: isso não é o anti-humanismo, isso é o próprio humanismo: tudo é algo se é no palco do que é o homem, uma  vez que tudo é para o olho do homem, tudo é manipulável como quem manipula notas gastas do papel moeda e da transferência pela internet de dinheiro. O mundo do Humanismo, desse modo, se torna o mundo da manipulação. Não manipulação mental somente, mas material. Pegamos pessoas e cães como quem pega bananas, para fotos ou experiências genéticas. Nesse mundo, o personagem principal, o homem, é o secundário, uma vez que, de fato, ele nada é senão o monstro do filme O labirinto do Fauno, aquele monstro que possui os olhos nas palmas da mão.
Nesse tipo de análise, como bem disse Olgária Matos no Hora da Coruja de 06/07/2014, também nós no ato de produção de informações e imagens, não inovamos e nem trazemos outra coisa senão a continuidade desse processo de mais imagens na trama do que é a produção do central dessa forma de vida: o espetáculo. Cada um com seu computador ou derivados, não inverte e nem escapa dessa produção de criar palcos de “mais do mesmo” e “mais do super mesmo”.
Engano nosso se achamos que isso é atividade ou interatividade, como contraposto à passividade. Estamos sim num frenesi de interatividade, mas na lógica da produção do que é repetitivo na indistinção e, então, um tédio.
Como se pode notar, nessa ótica, a “sociedade do espetáculo” é parte da “sociedade de consumo”, mas o fenômeno do “consumismo” não é um problema em si. Por isso Marx nunca quis viver numa sociedade do passado, feudal, sem consumo em larga escola. Porque o consumismo era, para ele, apenas subproduto, não imediatamente problemático, da sociedade de mercado ampliada que se transforma em sociedade do espetáculo.
Raciocinar assim, segundo a teoria exposta aqui, é levar Marx a sério. É levar Heidegger  a sério. Mas, para tal, é necessário fazer cada uma das passagens aqui indicada, com critério da cadência e da calma filosófica. Não é em velocidade avançada que se faz isso. E para tal é necessário formação – formação heroica, pois se trata de uma tentativa de ser algo produzido nesse tempo, e concomitantemente, ser algo que possa fazer a crítica desse tempo. Compreender o mundo assim é ver o mundo do espetáculo sem, no entanto, sucumbir a ele. Não cair na profusão de imagens sem hierarquia, que impedem o pensamento porque, afinal, a equivalência depende da álgebra, e a álgebra é a matemática dos burros. Trocar variáveis abstratas, fazendo o jogo algébrico de “isso equivale a tal coisa”, não é, convenhamos, um ato de grande inteligência. É um ato de entorpecimento do raciocínio, um adormecer. Uma morte. Um grande banho no mar gigantesco da indistinção.
É bobagem querer entender tudo isso como ciência empírica. Nem sociologia isso é. Isso é filosofia. Uma narrativa teórica sobre nossa vida, com nítidas passadas ficcionais, o seja, é a criação de um modelo para dizer como estamos e como estaremos. Um modelo, e não o modelo único.
Há mais que dizer sobre o espetáculo? Sim, e há outros pontos de vista sobre o assunto. Posso imaginar uma outra via de abordagem a partir de Peter Sloterdijk, talvez até de Richard Rorty. Farei isso em outras oportunidades. Não em oposição a essa narrativa exposta aqui, mas como o que se pode pensar a mais que isso, inclusive de modo a não fornecer “mais do mesmo”. Sair do “mais do mesmo” é talvez a única esperança que temos de escapar, ainda que nos eu interior, dos efeitos devastadores da banalização completa de tudo, a imposição da vida da “igualação de todos contra todos”, escapar dos efeitos mais horríveis da vitória do Terceiro estado, não o pedido de liberdade ou de fraternidade, mas o de igualdade.
Ser igual, tornar-se igual, somar a igualdade formal política a uma igualdade que faz com que ninguém tenha uma ruga na testa que o outro não possa ter, sendo todos intercambiáveis, é o efeito colateral do igualitarismo do Terceiro Estado.

Paulo Ghiraldelli, 56, filósofo. Autor de A filosofia como crítica da cultura (Cortez, 2014)

FONTE: http://ghiraldelli.pro.br/o-que-e-a-sociedade-do-espetaculo/#more-2782