segunda-feira, 10 de agosto de 2015

A LIBERTAÇÃO DO POBRE EM OSCAR ROMERO - Numa perspectiva romeriana à luz dos filósofos Enrique Dussel e Ernst Bloch

A LIBERTAÇÃO DO POBRE EM OSCAR ROMERO

Numa perspectiva romeriana à luz dos filósofos

 Enrique Dussel e Ernst Bloch

Manoel de Pádua Paiva Morais


1.     O POBRE EM OSCAR ROMERO E A LIBERTAÇÃO DUSSELIANA

Beato Dom Oscar Romero, arcebispo de San Salvador, El Salvador, América Central, assassinado junto ao altar e próximo a seu povo, na capela do Hospital da Divina Providência, no dia 24/03/1980, é um representante do cristianismo da América Latina. O pensamento do Beato Óscar Romero e sua prática libertadora esta historicamente comprometida com a causa dos pobres e é a melhor leitura para compreendermos o espírito de Romero. Afastando-se dessa óptica, o leitor se afasta do próprio arcebispo salvadorenho. Nosso estudo, então, dirige-se para o final da década de 1970 e, ao mesmo tempo, para nosso contexto de hoje. São épocas bem diversas em muitos aspectos, mas que registram importantes semelhanças, particularmente no tocante à realidade dos pobres.

A comunhão entre o pastor e seu sofrido rebanho, a que Romero acompanha e visita com frequência, torna-se, contudo, sempre mais profunda. E, ao invés de se intimidar, é aí que Romero se agiganta. O homem tímido, espontaneamente conservador, mostra-se imbatível na defesa de seu povo empobrecido e vitimado por tamanha violência (SILVA, 2012, p. 57)

A proximidade permite a Romero conhecer de perto a vida, as alegrias e o sofrimento de seu povo, muitos rostos e encontros face a face. Aproximar-se de quem está à margem, ir a seu encontro para servi-los, esse é o apelo do cristianismo do Beato. Ele vive com vigor, e por isso se declara conhecedor das feridas do povo de San Salvador. A palavra libertação atualmente não está em uso e a mesma pode ser inadequada ou ultrapassada, por estar associado a um determinado tempo histórico. Todavia, a reflexão é além de um problema conceitual. A presença dos pobres e sua morte nunca deixaram de ser atual.
Encontramo-nos numa nova sociedade onde a era da informação, era digital, a pós-modernidade, as transformações tecnológicas e culturais, evidenciam uma nova etapa civilizatória. No entanto, para os pobres, as grandes revoluções técnicas significam o aumento do número de excluídos.

Os rostos dos pobres hoje podem ser novos, mas permanece o princípio: que os pobres tenham vida. É aqui que localizamos o núcleo, o eixo a partir do qual temos acesso a uma interpretação de Romero que condiz com a sua experiência mais profunda. E a interrogação agora, pertinente também para o século XXI, é: como continuar hoje a ser Igreja, a fazer teologia, a organizar uma sociedade, segundo o bem dos pobres? (SILVA, 2012, p.196)

A pertinência das reflexões do filósofo Enrique Dussel para a libertação do pobre consiste em frisar o sofrimento do outro, a causa de uma realidade escondida em que o sujeito nega o outro. Ademais, sua libertação reflete sobre a relação entre o eu e o outro na sociedade, debatendo a questão da exclusão social. A partir disso, analisamos criticamente o discurso latino-americano de Romero e a superação do irracionalismo moderno por meio da razão crítico-libertadora.

A experiência da proximidade entre pessoas como pessoas é que constitui o outro como “próximo” (próximo, vizinho, alguém), como outro; e não como coisa, instrumento, mediação. A práxis, então, na atualização da proximidade, da experiência de ser próximo para o próximo, de construir o outro como pessoa, como fim de minha ação e não como meio: respeito infinito (DUSSEL, 1987, p. 19).

Para o filósofo da libertação a pessoa só se torna pessoa quando esta frente a outra pessoa, num face-a-face, num rosto a rosto, numa relação prática, onde a pessoa é alguém para a outra, não como uma simples coisa. É nesta relação face-a-face de duas ou mais pessoas, que acontece a práxis.

Os extremos da “relação” prática são pessoas. O que é ser pessoa? Alguém é pessoa, estritamente, só e quando está na relação da práxis. Uma pessoa é pessoa quando esta ante outra pessoa ou pessoas. Quando está só perante a natureza cósmica, de certo modo deixa de ser pessoa. (DUSSEL, 1987, p. 19).

O Método da Filosofia da Libertação terá seu ponto de partida no princípio da alteridade, onde o pressuposto desse método estabelece que o discurso filosófico tem um caráter eminentemente ético, para além da dimensão puramente lógica. O discurso é válido ou inválido não pôr sua correção lógica, mas por seu acordo ou desacordo com a justiça. Torna-se evidente que neste artigo, não teríamos espaço para detalhar todo o escopo do pensamento dusseliano, mas sim, desenvolver seus principais postulados a partir das categorias alienação e libertação e suas implicações para a questão do outro. Para Dussel, a alienação consiste no fato de tomar o outro enquanto instrumento, isto é, enquanto um ser que serve de mediação para a realização das vontades do outro, aniquilando a semelhança e a distinção.

É o outro em seu grito, em seu clamor, em sua dor que nos pro-voca (nos chama de lá adiante), nos con-voca (nos chama para ele em sua ajuda), nos interpela (exige explicações de um fato, cita ou chama testemunhas ante a realidade de sua pobreza). Ele imediatamente nos aparece como alguém que tem direitos. (DUSSEL, 1986, p. 52).

A libertação só acontece quando se ouve a voz gritante do pobre. É preciso assumir, tomar sobre si este grito, como denota Dussel, este grito que perturba, inquieta a consciência. É necessária uma responsabilidade, que para o filósofo, esta acção é sem dúvida um novo nascimento, isto é, um sair-se de si, para encontrar o outro.

2.     O CONTEXTO DO BEATO DOM OSCAR ROMERO À LUZ ESPERANÇA CONCRETA EM BLOCH


A utopia faz parte da estrutura histórica do homem e é este um dos pilares do filósofo  alemão Ernst Bloch. Portanto, uma reflexão aberta à realidade latino-americana, permitindo que, como interlocutor, possamos nos situar quanto à prática utópica dos que lutam por mudanças qualitativas da sociedade. Assim, para que possamos entender o vigor até o martírio de Oscar Romero, é preciso, que analisemos detalhadamente o conceito de esperança concreta, deixando de lado concepções idealistas, onde o futuro é aguardado sem que o presente seja levado em consideração. Na fórmula blochiana: a razão não consegue florescer sem a esperança, a esperança não consegue falar sem a razão, indica assim, o papel ativo da esperança esperada. A esperança pelo ainda não-ser implica num engajamento para sua real e possível concretização, mediado, por conseguinte, por uma ativa e racional esperança.

E enquanto a realidade não for completamente determinada, enquanto ela contiver possibilidades inconclusas em nossas germinações e novos espaços de conformação, enquanto for assim, não poderá proceder da realidade meramente fática qualquer objeção absoluta contra a utopia (BLOCH, 2005, p. 195).

A proposta de Oscar Romero, sobretudo em sua estrutura de libertação, rompe com o sistema que oprime e faz dos indivíduos meros anônimos diante da máxima exploração e do lucro. Assim sendo, a prioridade do governo salvadorenho consistia em afirmar as relações mediante a lógica da opressão. Esta se apropria de mecanismos econômicos e sociais para desempenhar a função de dominar as ações das pessoas negando a coletividade, tornando-os seres fragmentados, e dessa forma, utilizando o outro como instrumento a favor do fluxo do capital. Deste modo, temos como conclusão específica deste processo a situação em que os bens gerados pela economia salvadorenha beneficiavam a minoria, massacrando a maioria dos cidadãos.

A verdadeira gênese não se situa no começo, mas no fim, e ela apenas começará a acontecer quando a sociedade e a existência se tornarem radicais, isto é, quando se aprenderem pela raiz. Porém, a raiz da historia é o ser humano trabalhador, produtor, que remodela e ultrapassa as condições dadas. Quando ele tiver apreendido a si mesmo e ao que é seu sem alienação, surgirá no mundo algo que brilha para todos na infância e onde ninguém esteve ainda: a pátria (BLOCH, 2006, p. 462).

Romero consciente de que a exclusão e a opressão se devia a causas estruturais que exigiam solução também estrutural. Denuncia e desmascara as injustas que causam miséria e repressão, e não teme pôr em risco a própria vida e a segurança da Igreja. Frente a tantas e tamanhas iniquidades que atentavam à vida, o Beato Romero experimenta a indignação, mas, sobretudo, faz da compaixão e da misericórdia para com o povo que sofre o princípio diretriz de toda sua atuação. O arcebispo de San Salvador reafirmou sua convicção como homem da esperança, oportunizando o protagonismo dos salvadorenhos como partícipes da transformação social.

Caminhando com seu povo, Romero animava-o na esperança. Passará esta hora de prova e permanecerá refulgente o ideal pelo qual morreram tantos cristãos. Mas já se vislumbra a liberdade de um povo oprimido.  As circunstâncias do país não devem apagar, mas reavivar ainda mais a chama da esperança e da fé. (SILVA, 2002, p. 54)

Em Bloch o princípio esperança, consiste num instrumento objetivo para o homem construir um futuro concreto. Se o futuro ainda-não-é-acontecido, como se esperar pelo que não é, numa esperança correta? Donde se pode inferir que, se o futuro não é algo que passivamente deve ser esperado, há um elemento que intervém na esperança, orientando-a: a razão. A análise dos princípios originários da esperança permite-nos compreender que ela é constitutiva do ser humano, não como uma espécie de essência abstrata, mas sim acontecendo na prática social daqueles que buscam modificar o estado de coisa vigente. Assim, a esperança concreta é fundada na realidade humana, sem, contudo, negar as contradições que pertencem à própria condição histórica do homem.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Romero fora a voz dos sem voz e deu o melhor de si para que os pobres recuperassem eles mesmos a palavra que lhes fora roubada. Beato Oscar se aproximou, acompanhou, e por isso soube ouvir o que os pobres tinham a dizer. Por isso é que consideramos capital a pergunta: como continuar afirmando essa centralidade dos pobres hoje, no novo contexto de nossos dias? Trata-se não só de perguntar pela opção e critério romeriano acerca dos pobres, mas de nos perguntarmos sobre o sempre desta opção e critério, sobre sua atualidade para nós. E, por consequência, questionarmos a nós mesmos: como assumir esse critério no contexto que é o nosso hoje? Como optar em fazer filosofia e teologia à luz de Romero no século XXI?
A partir da reflexão vigente indicamos que a relevância dos referenciais e categorias trabalhadas por Dussel e Bloch possuem muitas complementaridades e convergências para a crítica, uma vez que, suas compreensões de homem-mundo são vitais para a posição epistemológica assumida por esta. Para a perspectiva crítica em que ambos se inserem, a práxis de dominação não reconhece a alteridade. O outro deixa de ser importante para tornar-se coisa. O agir da opressão, ao negar o Outro como outro, incorpora-o num sistema que o aliena e a possibilidade em transformarmos as formas como nos relacionamos com a natureza, o que implica, nos relacionarmos com a humanidade. A afirmação da esperança concreta será tanto quanto mais possível numa nova postura da comunidade humana que, partindo dos referenciais do Beato Oscar Romero na prática do face a face, de uma experiência própria do falar e do escutar, terá como consequência a libertação do pobre numa perspectiva ética social.
Em 24 de maio de 2015 se realizou a beatificação de dom Oscar Arnulfo Romero Galdámez. A missa, celebrada na Praça do Divino Salvador do Mundo, reuniu mais de 250 mil fiéis, e foi presidida pelo representante do papa Francisco, cardeal Angelo Amato, prefeito da Congregação para as Causas dos Santos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BLOCH, E. O princípio esperança. Tradução e notas Nélio Schneider. Rio de Janeiro:  EdUERJ: Contraponto, 2005.

______. O princípio esperança. Vol. 3. Tradução e notas Nélio Schneider. Rio de Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2006.

DUSSEL, E. Método para uma Filosofia da Libertação. São Paulo: Loyola, 1986.

 _________. Ética comunitária. Tradução de Jaime Clasen. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.

SILVA M., R. Sempre o bem dos pobres: O pastor Oscar Romero, o teólogo Jon Sobrino e o povo salvadorenho (UM TRÍPTICO ECLESIAL E SUA ATUALIDADE PARA O SÉCULO XXI)  . 2012. 303 f. Tese (Doutorado em Teologia) INSTITUTO ECUMÊNICO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA, ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA, São Leopoldo. 2012.

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